EDITORIAL

A PÁTRIA DO POETA

II a IV

II

Pequenas orquestras de marfim executam, 
cantos de violência,

Opaco verme azul,
alegre e bestial entre violinos,
feroz baixo de amor. Albatroz e princesas.

Bendito verme solitário,
quem se arrasta vive em mim.

Sou quem vaga obscurecido pelas águas, 
um feto e seu destino:

Vertente lumínica.

Catarata vulcânica.

Verme infernal.

III

Sou quem chega do centro profundo da terra.
O ozônio vil,
o oxigênio apaixonado do universo,
o sangue bestial.

Decidi viver em um trapézio astral,
ser a marionete intergaláctica.

Provenho da terra,
sou o furibundo vendedor de ilusões.

Minha vida é a de todos.

IV

Humano por excelência,
do inferior fiz minha própria vida.

Andrajo do século,
mostra definitiva do massacre,
perfeito lixo imortal.

No espaço uma brecha acesa de céu.

Águas e refrescos e mananciais rochosos, 
púrpuras marinhas,
estrelinhas pequenas e distantes
e azeites luminosos de luz,
carne do século.

A pátria do poeta II a IV

 

UNIÃO LIVRE
de André Breton
na voz de Miguel Oscar Menassa

Minha mulher com cabeleira de labaredas de lenha
com pensamentos de centelhas de calor
com talhe de relógio de areia
minha mulher com talhe de lontra entre os dentes de um tigre
minha mulher com boca de divisa e de ramalhete de estrelas
                                      [de última magnitude
com dentes de marca de rato branco sobre a terra branca
com língua de âmbar e vidro esfregados
minha mulher com língua de hóstia apunhalada
com língua de boneca que abre e fecha os olhos
com língua de pedra incrível
minha mulher com cílios de baquetas escritos por um menino
com supercílios de borda de ninho de andorinha
minha mulher com frontes de ardósia de teto de invernadouro
e de cristais empanados
minha mulher com ombros de champanha
e de fonte com cabeças de delfins sob o gelo
minha mulher com bonecas de cera
minha mulher com dedos de azar e de ás de coração
com dedos de feno ceifado
minha mulher com braços de marta e de nozes
de noite de São João

de ligústico e de ninho de estripar
com braços de espuma de mar e de comporta
e de combinação de trigo e moinho
minha mulher com pernas de foguete
com movimentos de relojoaria e desespero
minha mulher com panturrilhas de medula de sabugueiro
minha mulher com pés de iniciais
com pés de molhos de chaves com pés de pássaros no
                                         [momento de beber
minha mulher com pescoço de cevada sem polir
minha mulher com garganta de Vale de Ouro
de encontro no leito mesmo da torrente
com seios noturnos
minha mulher com seios de montinho marinho
minha mulher com seios de crisol de rubis
com seios de espectro da rosa sob o orvalho
minha mulher com ventre de abertura de leque dos dias
com ventre de garra gigante
minha mulher com ombros de pássaro que foge em vôo vertical
com costas de mercúrio
com costas de luz
com nuca de pedra rolada e de giz molhado
e de queda de um copo no qual acabam de beber
minha mulher com quadris de barquilha
com quadris de lustro e de plumas de flecha
e de canudos de pluma de pavão real branco
de balança insensível
minha mulher com nádegas de greda e amianto,
minha mulher com nádegas de lombo de cisne
minha mulher com nádegas de primavera
com sexo de espadana
minha mulher com sexo de jazida aurífera e de ornitorrinco
minha mulher com sexo de alga e de velhos bombons
minha mulher com sexo de espelho
minha mulher com olhos cheios de lágrimas
com olhos de panóplia violeta de agulha imantada
minha mulher com olhos de pradaria
minha mulher com olhos de água para beber na prisão
minha mulher com olhos de bosque eternamente debaixo de machado
com olhos de nível de água de nível de ar de terra e de
           [fogo.
 

UNIÃO LIVRE de André Breton na voz de Miguel Oscar Menassa

 Índio Gris