25 de Agosto de 2004 em Buenos Aires
RECITAL DE POESIA "Clube de amigos da Vaca Profana." MIGUEL MENASSA E TOM LUPO
RECITAM A GRANDES POETAS:
PIZARNIK, GARCÍA LORCA, MENASSA
• ALEJANDRA PIZARNIK
OLHOS PRIMITIVOS
(Fragmento)
...
Escrevo contra o medo. Contra o vento com garras que se alojam em minha
respiração.
E quando
pela manhã temes encontrar-te morta (e que não haja mais imagens): o silêncio da
compreensão, o silêncio do mero estar, nisto se vão os anos, nisto se foi a bela
alegria animal.
Esperando que um mundo seja desenterrado pela linguagem, alguém canta o lugar em
que se forma o silêncio. Logo comprovará que não porque se mostre furioso existe
o mar, nem tampouco o mundo. Por isso cada palavra diz o que diz e além disto
outra coisa.
...
Temos tentado fazer-nos perdoar o que não fizemos, as ofensas
fantásticas, as culpas fantasmas. Por bruma, por ninguém, por sombras, temos
expiado.
O que quero é honrar à possuidora de minha sombra: a que subtrai do nada
nomes e figuras.
E que eu a
levei ao rio
crendo que era mocinha,
mas tinha marido.
Foi a noite de Santiago
e quase por compromisso.
Se apagaram os faróis
e se acenderam os grilos.
Nas últimas esquinas
toquei seus peitos adormecidos,
e me abriram imediatamente
como ramos de jacintos.
O amido de sua anágua
me soava no ouvido,
como uma peça de seda
rasgada por dez facas.
Sem luz de prata em suas taças
as árvores cresceram
e um horizonte de cães
ladra muito longe do rio.
* * * *
Passadas
as sarçamoras,
os juncos e os espinhos,
sob sua mata de pêlo
fiz uma cova sobre o limo.
Eu tirei a gravata.
Ela tirou o vestido.
Eu o cinturão com revólver.
Ela seus quatro corpinhos.
Nem nardos nem caracóis
têm a cutis tão fina,
nem os cristais com lua
reluzem com esse brilho.
Seus músculos me escapavam
como peixes surpreendidos,
a metade cheios de lume,
a metade cheios de frio.
Aquela noite corri
o melhor dos caminhos,
montado em potra de nácar
sem bridas e sem estribos.
Não quero dizer, por homem,
as coisas que ela me disse.
A luz do entendimento
me faz ser muito comedido.
Suja de beijos e areia
eu a levei ao rio.
Com o ar se batiam
as costas dos lírios.
Me portei
como quem sou.
Como um cigano legítimo.
Presenteei-lhe um costureiro
grande de raso palhete,
e não quis enamorar-me
porque tendo marido
me disse que era mocinha
quando a levava ao rio.
Verde que
te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco sobre o mar
e o cavalo na montanha.
Com a sombra na cintura,
ela sonha em sua varanda
verde carne, pêlo verde,
com olhos de fria prata.
Verde que te quero verde.
Sob a lua cigana,
as coisas a estão mirando
e ela não pode mirá-las.
* * * *
Grandes
estrelas de escarcha,
vem com o breu de sombra
que abre o caminho da aurora.
A figueira esfrega seu vento
com a lixa de suas ramas,
e o monte, gato gardunho,
eriça suas pitas azedas.
Mas quem virá? E por onde...?
Ela segue em sua varanda
verde carne, pêlo verde,
sonhando no mar amargo.
* * * *
Compadre,
quero mudar,
meu cavalo por sua casa,
minha montaria por seu espelho,
meu garfo por sua manta.
Compadre, venho sangrando,
desde os portos de Cabra.
Se eu pudesse, mocinho,
este trato se cerrava.
Mas eu já não sou eu,
nem minha casa é já minha casa.
Compadre, quero morrer
descentemente em minha cama.
De aço, se pode ser,
com os lençóis de holanda.
Não vês a ferida que tenho
desde o peito à garganta?
Trezentas rosas morenas
leva tua peiteira branca.
Teu sangue verte e foge
ao redor de teu cinto.
Mas eu já não sou eu.
Nem minha casa é já minha casa.
Deixai-me subir ao menos
até as altas varandas,
deixai-me subir! Deixai-me
até as verdes varandas.
Varandais da lua
por onde retumba a água.
* * * *
Já sobem
os dois compadres
para as altas varandas.
Deixando um rastro de sangue.
Deixando um rastro de lágrimas.
Tremiam nos telhados
trepadeiras de flandres.
Mil pandeiros de cristal,
feriam a madrugada.
* * * *
Verde que
te quero verde,
verde vento, verdes ramas.
Os dois compadres subiram.
O longo vento, deixava
na boca um raro gosto
de fel, de menta e de alfavaca.
Compadre! Onde está, diz-me?
Onde está tua menina amarga?
Quantas vezes te esperou!
Quantas
vezes te esperara
cara fresca, negro pêlo,
nesta verde varanda!
* * * *
Sobre o
rosto da cisterna,
se mexia a cigana.
Verde carne, pêlo verde,
com olhos de fria prata.
Uma carambina de lua,
a sustenta sobre a água.
A noite se pôs íntima
como uma pequena praça.
Guardas civis bêbados,
na porta golpeavam.
Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco sobre o mar.
E o cavalo na montanha.
As
picaretas dos galhos
cavam buscando a aurora,
quando pelo monte obscuro
baixa Soledad Montoya.
Cobre amarelo, sua carne,
trilha a cavalo e a sombra.
Bigornas esfumando seus peitos,
gemem canções redondas.
Soledad: por quem perguntas
sem companhia e a estas horas?
Pergunte por quem pergunte,
diga-me: a ti que importa?
Venho buscar o que busco,
minha alegria e minha pessoa.
Soledad de meus pesares,
cavalo que se desboca,
por fim encontra o mar
e travam as ondas.
Não me recordes o mar,
que a pena negra, brota
nas terras de azeitona
sob o rumor das folhas.
Soledad, que pena tens!
Que pena tão lastimável!
Choras sumo de limão
agre de espera e de boca.
Que pena tão grande! Corro
minha casa como uma louca,
minhas duas tranças pelo solo
da cozinha à alcova.
Que pena! Estou me pondo
de azeviche, carne e roupa.
Ai minhas camisas de fio!
Ai meus músculos de papoula!
Soledad: lava teu corpo
com águas das calhandras,
e deixa teu coração
em paz, Soledad Montoya.
***********************
Por baixo
canta o rio:
volante de céu e folhas.
Com flores de abóbora,
a nova luz se coroa.
Oh pena dos ciganos!
Pena limpa e sempre só.
Oh pena de rêgo oculto
e madrugada remota!
Ao chegar,
choquei
com suas paredes grises,
seus homens fantasmais,
suas mulheres alertas, precavidas.
Foi um golpe alucinado
de um porvir tão grande
que me atirou na cama 15 dias
sem saber o que acontecia,
em que país estava.
Ou era que não estava,
que nunca havíamos chegado,
que não vinha de nenhuma parte?
Mas, de golpe, estirei a palavra
para alcançar esse pequeno dólar
que, voando, me mostrava o caminho.
Para viver em Buenos Aires,
é necessário falar inglês.
Não só levaram tudo,
não só criaram os mutilados
senão que, falando inglês,
nós somos como eles: culpáveis.
Mas o destino cruel
o decidiu assim:
culpáveis somos todos
mas pagaremos nós.