Revista semanal pela Internet
Índio Gris UNE - DIRIGE - ESCREVE E CORRESPONDE: MENASSA 2004 NÃO SABEMOS FALAR, MAS O FAZEMOS EM VÁRIOS IDIOMAS ÍNDIO GRIS
É PRODUTO ÍNDIO GRIS Nº 218 ANO V 25 de Agosto
RECITAL DE POESIA
"Clube de amigos da Vaca Profana."
MIGUEL MENASSA E TOM LUPO
RECITAM GRANDES POETAS:
BORGES, TUÑÓN, BUKOWSKI, OROZCO.
• JORGE LUIS BORGES
OS JUSTOS
Um homem que cultiva seu jardim, como queria Voltaire.
Que agradece que na terra haja música.
Que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sul jogam um silencioso xadrez.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrada.
Uma mulher e um homem que lêem os tercetos finais de certo canto.
Quem acaricia um animal adormecido.
Quem justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
Quem agradece que na terra haja Stevenson.
Quem prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão salvando o mundo.
A CHUVA
Bruscamente a tarde clareou
porque já cai a chuva minuciosa.
Cai e caiu. A chuva é uma coisa
que sem dúvida sucede no passado.
Quem a ouve cair recobrou
o tempo em que a sorte venturosa
lhe revelou uma flor chamada rosa
e a curiosa cor do colorido.
Esta chuva que cega os cristais
alegrará em perdidos arrabaldes
as negras uvas de uma parreira por certo
pátio que já não existe. A molhada
tarde me trás a voz, a voz desejada,
de meu pai que volta e que não morreu.
• RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN
DOMINGO FERREIRO
Toca a gaita Domingo Ferreiro
toca a gaita... «Não quero, não quero!»
Porque estão cheias de sangue as fozes,
porque não quero, não quero, não quero.
E secaram os ramos floridos
que ela trazia na saia do vento,
que ela trazia a seu noivo soldado
ou pescador, lavrador, marinheiro.
Sobre Galícia caiu a peste,
ai, os obscuros sargentos vieram.
Estão pendurando nos pinos os homens,
toca a gaita, não quero, não quero.
Nossos irmãos que estão lá embaixo
logo virão vingar os mortos,
logo virão na metade do verão,
logo virão na metade do inverno.
Quem não morreu andará pelo monte
e nas aldeias cairão os bons.
Ai, que não vão os lobos ao monte,
toca a gaita, não quero, não quero.
Já chegarão as valentes milícias
para acabar com a escória do deserto.
Já chegarão na metade da História,
Já chegarão na metade dos tempos.
Toca a gaita... que baile o bispo!
Toca a gaita, não quero, não quero.
Porque não é hora de festa na Espanha,
porque não quero, não quero, não quero.
Já chegarão os soldados leais
para acabar com os pássaros negros,
já chegarão na metade da Bíblia,
já chegarão na metade dos mortos.
Toca a gaita. Que baile a víbora!
Toca a gaita, não quero, não quero.
Porque a gaita não quer que toque.
Porque morreu Domingo Ferreiro.
A RUA DO BURACO NA METADE
Eu conheço uma rua que há em qualquer cidade
e a mulher que amo com uma boina azul.
Eu conheço a música de um barracão de feira
barquinhos em garrafas e fumaça no horizonte.
Eu conheço uma rua que há em qualquer cidade,
nem os lábios enviesados sobre um velho cantar
nem o fixado apagado da grotesca armação
grade do mundo para meu coração.
Nem as luzes que sempre se vão com outros homens
de joelhos nus e de braços estendidos.
Tinha uns poucos sonhos iguais aos sonhos
que acariciam de noite às crianças adormecidas.
Tinha o resplendor de uma felicidade
e via meu rosto fixado nas vitrines
e num lugar do mundo era o homem feliz.
Conheces paisagens pintadas nos vidros?
E bonecos de trapo com alegres gorros?
E soldadinhos juntos marchando na manhã
e carros de verdura com cores alegres?
Eu conheço uma rua de uma cidade qualquer
e minha alma tão distante e tão próxima de mim
e rindo da morte e da sorte e
feliz como um ramo de vento na primavera.
O cego está cantando. Te digo: Amo a guerra!
Isto é simples, querida, como o globo de luz
do hotel em que vives. Eu subo a escada
e a música vem a meu lado, a música.
Nós dois somos ciganos de uma troupe vagabunda,
alegres no alto de uma rua qualquer.
Alegres as campanas com uma nova voz.
Tu crês todavia na revolução
e pelo buraco que coses em tu meia
sai o sol e se enche todo o quarto de luz.
Eu conheço uma rua que há em qualquer cidade,
uma rua que ninguém conhece nem transita.
Só eu vou por ela com minha dor desnudo,
só com a recordação de uma mulher querida.
Está num porto. Um porto? Eu conheci um porto.
Dizer, eu conheci, é dizer: Algo morreu.
• CHARLES BUKOWSKI
AH SIM, AH SIM
Ah sim, ah sim
leva muito tempo dar-se conta
que há piores coisas que estar só
geralmente um se dá conta demasiado tarde
e não há pior coisa que
demasiado tarde.
DIRIGINDO ATRAVÉS DO INFERNO
As pessoas estão exaustas, infelizes e frustradas.
As pessoas são amargas e vingativas.
As pessoas estão enganadas e temerosas.
As pessoas são iracundas e medíocres
e eu dirijo entre eles na autopista
e eles projetam o que lhes ficou de si mesmos
em sua maneira de dirigir.
Alguns mais odiosos
alguns mais dissimulados que outros.
Alguns não gostam que os passem e tentam evitar que outros o façam.
Alguns tentam bloquear as mudanças de pista.
Alguns odeiam os autos mais novos, mais caros,
outros nesses autos odeiam os autos mais velhos.
A autopista é um circo de ilusões
pequenas e baratas,
é a humanidade em movimento.
A maioria vivendo de um lugar que odeia
indo a outro lugar que odeia ainda mais.
As autopistas nos ensinam
em quem nos convertemos
e muitos dos choques e mortes são a colisão
entre seres incompletos
entre vidas penosas e dementes.
Quando dirijo pelas autopistas
vejo a alma de minha cidade
e é feia, feia, feia
vejo a alma de minha nação
e é feia, feia, feia.
Os vivos estrangularam seu coração.
FLORES PODRES
Flores podres,
moscas presas em grades
motins, rugidos de leões enjaulados
palhaços enamorados de bilhetes
nações que trasladam as pessoas como peões de xadrez.
Ladrões à luz do dia
com maravilhosas esposas e vinhos pelas noites.
As cadeias atestadas
estas e outras coisas
demonstram que a vida gira
sobre um eixo podre.
Mas nos deixaram um pouco de música
e um pôster cravado em um canto,
um copo de whisky
uma gravata azul
um delgado volume de poemas de Rimbaud
um cavalo que corre como se o diabo
estivesse lhe retorcendo a cola
e depois de novo o amor
como um carro que dobra a esquina pontual
o vinho e as flores,
a água correndo através do lago
e verão e inverno
e verão e verão e de novo inverno
e verão e inverno.
SIM, SIM
Quando Deus criou o amor não ajudou muito
quando Deus criou os cães não ajudou os cães
quando Deus criou as plantas não foi muito original
quando Deus criou o ódio tivemos algo útil
quando Deus me criou, bom, me criou
quando Deus criou o macaco estava adormecido
quando criou a girafa estava bêbado
quando criou as drogas estava acomodado
quando criou o suicídio estava deprimido
quando te criou dormindo na cama
sabia o que fazia
estava bêbado e acomodado
e criou as montanhas e o mar e o fogo
ao mesmo tempo
cometeu alguns erros
mas quando te criou dormindo na cama
conseguiu de veras algo para Seu Bendito Universo.
• OLGA OROZCO
GÊNESIS
Não havia nenhum signo sobre a pele do tempo.
Nada. Nem esse tapete de inverno repentino que pressagia as
[garras do relâmpago quem sabe até amanhã.
Tampouco esses incêndios desde sempre que anunciam uma
[tocha entre as águas de todo o porvir.
Nem sequer o tremor da advertência sob um sopro de
[abismo que desemboca em nunca ou em ontem.
Nada. Nem terra prometida.
Era só um deserto de cal vivo tão branco como negro,
um ávido fantasma nascido das pedras para roer o sonho
[milenar,
a queda para fora que é o sonho com que sonham as
[pedras.
Ninguém. Só um eco de passos sem ninguém que se afastam
e um leito ensimesmado em marcha para o final.
Eu estava ali estendida;
eu, com os olhos abertos.
Tinha em cada mão uma caverna para olhar para Deus,
e um rastro de formigas ia desde sua sombra até meu
[coração e minha cabeça.
E alguém rompeu no alto essa talha gris onde subiam a
[beber as recordações;
depois rompeu o prontuário de cegos juramentos feridos
[a traição
e destroçou as tábuas da lei inscritas com o sangue
[coagulado das histórias mortas.
Alguém fez uma fogueira e atirou um por um os fragmentos.
O céu estava ardendo na extinção de todos os infernos
e na terra se borravam suas marcas e suas provas.
Eu estava suspensa em algum tempo da expiação
ensangüentada;
eu estava em algum lado muito lúcido de Deus;
eu, com os olhos fechados.
Então pronunciaram a palavra.
Houve um clamor de verde paraíso que ascende desgarrando
[a raiz da pedra,
e sua proa celeste avançou entre a luz e as trevas.
Abriram as comportas.
Uma marulhada radiante abarrotou a terrina de toda a esperança ainda
[desabitada,
e as águas tinham para cima essa cor de espelho
[na qual ninguém se olhou jamais,
e para baixo um fulgor de gruta tormentosa que olha desde
[sempre pela primeira vez.
Desandaram de pronto as marés.
Detrás surgiu uma terra para inscrever em fogo cada pisada
[do destino,
para envolver em erva sedenta a queda e o reverso de cada
[nascimento,
para encerrar de novo em cada coração a amêndoa do
[mistério.
Levantaram os selos.
A jaula do grande dia abriu suas portas ao delírio do sol
com tal que todo novo cativeiro do tempo fosse
[deslumbramento na mirada,
com tal que toda noite caísse com o véu da revelação
[aos pés da lua.
Semearam nas águas e nos ventos.
E desde esse momento houve uma só sombra submergida em
[mil sombras,
um sé resplendor inominado nessa luz de escamas que
[ilumina até o fim a rampa dos sonhos.
E desde esse momento houve uma borda de plumas
[acesas desde a mais remota distância,
umas asas que vem e se vão em um vôo de adeus a todos
[os adeuses.
Infundiram um sopro nas entranhas de toda a extensão.
Foi um roçar contra o último fundo do sangue;
foi um estremecimento de urdiduras na vertigem do ar;
e a alma descendeu ao barro luminoso para preencher a forma
[semelhante a sua imagem,
e a carne se alçou como uma cifra exata,
como a diferença prometida entre o princípio e o final.
Então se fizeram a tarde e a manhã
no último dia dos séculos.
Eu estava diante de ti;
eu, com os olhos abertos debaixo de teus olhos
na alva primeira do esquecimento.
VARIAÇÕES SOBRE O TEMPO
Tempo:
te vestiste com a pele carcomida do último profeta;
te gastaste a cara até a extrema palidez;
te puseste uma coroa feita de espelhos rotos e chuvosos
[trapos,
e salmodias agora o balbucio do porvir com as
[desenterradas melodias de outrora,
enquanto vagas em sombras por teu faminto escoriar,
[como os reis loucos.
Não me importam já nada todos teus desvarios de fantasma
[inconcluso,
miserável anfitrião.
Podes roer os ossos das grandes promessas em seus
[desvencilhados cadafalsos
ou saborear a áspera beberagem que resumam as decapitações.
E ainda não haverá bastante.
até que não devores com tua corte goyesca a moenda final.
Nunca se compassaram nossos passos nestes entrecruzados
[labirintos.
Nem sequer no começo,
quando me conduzias pela mão pelo bosque embrulhado
e me obrigavas a correr sem alento atrás daquela torre
[inalcançável
ou a descobrir sempre a mesma amêndoa com seu obscuro sabor
[de medo e de inocência.
Ah, tua plumagem azul brilhando entre as ramas!
Não pude embalsamar-te nem consegui extrair teu coração como
[uma maçã de ouro.
Demasiado constrangedor.
foste depois o chicote que açula,
o cocheiro imperial arremessando-me entre as patas de suas bestas.
Demasiado constrangedor
me condenaste a ser o refém ignorado,
a vítima sepultada até os ombros entre séculos de areia.
Temos lutado às vezes corpo a corpo.
Temos disputado como feras cada porção de amor,
cada pacto firmado com a tinta que fráguas em alguma
[instantânea eternidade.
cada rosto esculpido na inconstância das nuvens viajantes,
cada casa erigida na corrente que não volta.
Lograste arretarar-me um por um esses esmiuçados
[fragmentos de meus templos.
Não esvazies a bolsa.
Não exibas teus troféus.
Não relates de novo tuas façanhas de vergonhoso gladiador nas
[desmedidas galerias do eco. Tampouco eu te
concedi uma trégua.
Violei teus estatutos
Forcei tuas fechaduras e subi aos celeiros que denominam
[porvir.
Fiz uma só fogueira com todas tuas idades.
Te virei do avesso igual que a um malefício que se quebra
ou mesclei teus recintos como num anagrama cujas letras
trocam a ordem e mudam o sentido.
Te condensei até o ponto de uma borbulha imóvel,
opaca, prisioneira em meus quebradiços céus.
Estirei tua pele seca em línguas de memória,
até que a perfuraram os pálidos vazios do esquecimento.
Algum golpe de dados fiz vacilar sobre o vazio imenso entre duas horas.
Chegamos longe neste jogo atroz, encurralando-nos
[a alma
Sei que não haverá descanso,
e não me tentas, não, com deixar-me invadir pela plácida sombra,
[dos vegetais centenários,
mesmo que ao final de tudo estejas de pé, recebendo teu pago
o mesquinho suborno que acunham em tua honra as roncas
[maquinarias da morte,
mercenário.
E não escrevas então nas fronteiras brancas "nunca mais"
com tua mão ignorante,
como se fosses algum deus de Deus,
um guardião anterior, o amo de ti mesmo em outro tu que
[pendura as trevas.
Talvez sejas apenas a sombra mais infiel de algum
[de seus cães.
Índio Gris
|